quinta-feira, 10 de março de 2016

Crônica

O SEGUNDO LACRIMÁRIO DE ANTÔNIA FILHA
Fabiano Lopes de Paula*

Para M. Lourdes Lopes Braga e Conça Lopes


- FRAGMENTO 1 -

Foi a Lourdes , da janela, que primeiro a avistou. Vinha com o seu cache-nez de seda encarnado que lhe cobria o colo e a alma. Trazia, em uma das mãos, uma caixa de música em formato de gaiola, com um cantante pássaro e, na outra, um relógio de algibeira, que preferiu trazê-lo fechado em sua mão e que, de vez em quando, abria para ver as iniciais AETC, gravadas goticamente no verso.
Assungou a saia e se pôs para dentro de casa em passos lerdos, afinal havia duas noites em claro.

- O AMARGOR -

Entrou, sentou-se. Nem chegara a reparar que o pequeno sebo estava manco de uma das pernas. Olhou os sobrinhos e voltou a olhar o velho relógio e admirou que, em seu interior, não havia retrato ou nome, seja dela, e nenhum traço daquele amor, portanto, livre das avanias da traição.
Ousou solfejar, entre os dentes, aquela modinha, das noites enluaradas, cantada por todos naquelas ruas de baixo, tão antigas: “O meu viver hoje é triste, não é viver é penar...” e mesmo que não fosse um estribilho, repetia sempre este pedaço. E assim ficara por um bom tempo.
Chegou a enjeitar o escalfado de ovos, que Bernarda lhe trouxera em sua ‘beca’ esmaltada, mesmo temperado com muito basilicão e coentro, conforme ela mesma pedira. Dinha, a Bernarda, postada ao seu lado, ainda insistia, “Coma um pouco, Ná!” ,“Esper’inda !!!” - respondia.
Atreveu-se a comer, mesmo sabendo que nada lhe descia e, em cada colherada, alimentava o seu olhar para mais longe.
Olhou as paredes, olhou a única estampa de santo que pendia, um retrato dos sobrinhos Bibigo e Antenor com uma cabra e riu das Folhas de  Fortuna que Dinha Bernarda pendurara na parede, algumas delas, já com  os brotos periféricos, e não serviam mais para cobrir as feridas do papo, que a consumia aos poucos, por “aquela doença”.

- O MATO CRESCEU AO REDOR -

Desistiu de comer, dissaboreou. Foi até a janela e deitou fora aquela massa gosmenta, cheirando a coentro. Estancou o olhar quando viu que os langanhos desciam lentamente dos galhos do umbuzeiro, pensou nas suas lágrimas cozidas e espessas de tanto ficarem guardadas no seu coração, ervado de amor, e que a algozava por muitos anos. Nem viu que Tino, Nazaré e Chico jogavam birosca por ali. Pensou em chamar a Euterpe para um ensaio, mas não ia conseguir muito além de um espremido dó.
Foi até o quarto, buscou adormecer. Pegou o relógio, viu que estava parado em 1:27h, “que hora seria esta? ...”,  “... quando Emídio morreu?”  Já ouvira casos assim, que o relógio parara quando o dono se foi.
Tirou a gôndola do relógio, de ouro baixo e de gosto duvidoso. Imaginou que fora presente daquela amança?,  pois a peça de mau gosto não combinava com o fino relógio de prata da casa Gondolo Amaral, do Rio de Janeiro. Deu corda, para ver se não estava zangado. Não estava. Deu-lhe lustro e vida novamente.
Brincou com os ponteiros, mas resolvera voltar aos mesmos minutos 1:27h, pois dali começaria uma outra vida.
Pôs o relógio ao lado do travesseiro, mas antes juntou-o,  esfregou-o ao peito dorido, levou-o à boca, quase o beijou, mas parou no afago, pois  lembrara que  há  muito seu coração ficara  no outono.
Dormiu e ajustou o tique-taque ao ritmo do seu coração. Sonhou, dormiu, sonhou menina, na chácara dos “Bois” e das idas de trem para Bocaiúva, da espera e do encontro na estação ou na igreja do Bonfim. De fora e de longe, ouviam-se de vozes de crianças e vozes maduras... “Um dia veio um belo rei, belo rei....”


- Belo Horizonte Julho de 2015 -

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