sexta-feira, 22 de julho de 2016

Crônica

ANJO MINEIRO

 * Aristônio Canela

Quando cheguei na esquina, a pracinha espraiou-se sob o leque do meu olhar e os cachos de bougainville grená espreguiçavam-se docemente. Os aromas da noite fluíam, levados pelo sopro de um vento terno e adentravam almas e corações. A lâmpada do poste da esquina, queimada, transbordava o tempo numa penumbra repleta de mistérios. Misturada ao calor sertanejo, a minha terra admirava uma lua leitosa, espalhando luz de velas trêmulas, e eu me vi envolvido nesse manto, onde tudo podia ser ou não ser.

Encostado no muro, a figura de chapéu de palha, camisa esverdeada, calças marrom e sandália de três pontas, mostrava-se serenamente por inteiro.

 Uma barba rala da cor do cerne de aroeira cobria-lhe o rosto magro, salientando um par de olhos azulados e navegadores. No canto da boca de lábios finos, um indefectível palito rolava de um lado para o outro, como fazem os caminhoneiros após as refeições.

Os braços cruzavam o peito e um joelho dobrado fazia o pé jogar-se sobre o muro, enquanto o outro mantinha-se no chão.

As maças do rosto esponteavam descarnadas e o queixo afilava mais ainda com o sobranceio de um bigodinho tênue sobre a boca.

Um sorriso maroto abria suas fileiras, mostrando um dente de ouro reluzente, mesmo naquele lusco fusco.

Eu, de mãos nos bolsos e suor descendo pela testa, assobiava uma canção ritmada e fazia arranjos na compressão dos lábios, propondo ao ar uma passagem estreita, espalhando um som agudo e melodioso.

 Ao aproximar-me, de olhos atentos, vi duas asas mostrarem-se num certo amarelo desbotado e, claramente, a falta de algumas penas. Elas lhes caíam costa abaixo, como despencando, por falta, certamente, de esmero na manutenção.

Não pude deixar de parar para dois dedos de prosa, pois as noites desse modelo são sempre recheadas de aventuras.

Antes mesmo de eu mostrar-me cumprimentoso, ele quebrou seu solilóquio e me desejou boa noite. Ao responder de coração aberto, não sei mais determinar por quanto tempo fiquei naquele deleite, completamente inebriado por tanta bizarrice.

No final, vindo as últimas estrelas bêbadas, chutadoras de latas irresponsáveis, despedindo-se da madrugada, ele revelou-se: UAI! NUM VIM NÃO VIM NÃO SINHÔ! PRA LHE MANDÁ SÊ GOUCHE NA VIDA. LÁ ISSO NÃO MESS... ATÉ PURQUÊ NUM FALO O TAL DO FRANCÊS. NEM PUR ISSO, SEU MOÇO, NUM DÊXO DE SÊ SEU ANJO, CAIPIRA, É BEM VERDADE, MAS UMA GAMELA CHEIA ATÉ AQUI DE TERNURA. PUR TANTO, MEU AMIGO, VAI SÊ TRONCHO NESSE PUR AÍ E CONTE SEMPRE CUMIGO.

Eu? Bem... Quase explodi e, absolutamente eternizado em mim, voltei a assobiar aquela mesma cantiguinha varando o amanhecer.



* Membro da Academia Montes-clarense de Letras e da Academia de Letras - AML, Ciências e Artes do São Francisco - ACLECIA

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