domingo, 28 de agosto de 2016

Crônica -

FAZENDA CANTINHO

*Juvenal Caldeira Durães

No início da década de trinta, meu pai dispôs de sua padaria em Montes Claros e comprou uma propriedade rural de nome Cantinho, com uma distância aproximada de dez quilômetros de nossa cidade, para onde fui, ainda nos braços de minha mãe, viver até os dez anos de idade, naquele lugar sagrado, cercado pelos meus familiares, agregados e vizinhos, que ainda conservo na minha memória.
            
Ali, até o céu era nosso. Terras férteis, lavouras com safras abundantes, moagem de cana, fabrico de farinha e de laticínio caseiro, criação de galinhas, engordas de animais suínos e bovinos. Foi um tempo feliz, de paz e de alegria, de movimentação e de fartura para nós, agregados e vizinhos.
             
Minha mãe era do lar e de pouca instrução, porém, de grande experiência e sabedoria. Aprendi muito com seus conselhos e estórias interessantes, de fundo educativo e filosófico.  Meus irmãos eram unidos e davam-me apoio e atenção. Meu pai era convivente, calmo por natureza, versátil e gostava de novidades. Fazia as construções da fazenda com ajuda de nossos empregados. Construiu a igrejinha de Santo Antônio para nossa devoção, onde reuníamos à tarde do último domingo de cada mês para louvar o nosso padroeiro.
              
Era uma época favorável à pecuária e à agricultura, com mão de obra fácil e chuvas de verão constantes e abundantes. Quando o veranico de janeiro era inclemente e prolongado, minha mãe reunia os agregados e vizinhos para a famosa penitência de nove dias, que partia ao meio dia com o sol a pino, de nossa casa até a igrejinha de Santo Antônio. Todos em fila dupla, rezando, com pedra na cabeça, um ramo verde numa mão e uma garrafa d’água na outra, para depositar ao pé do cruzeiro em frente à capela. Geralmente, o santo padroeiro nos escutava e mandava chuvas antes de terminar a novena, para a nossa alegria e perpetuação da fé.
          
Além das mulheres e filhas dos agregados, tínhamos Altina, mulher solteira, robusta e disposta que morava conosco e fazia os trabalhos domésticos mais simples. Lembro-me dos carreiros que passaram por lá: Juca, Antônio Contendas e Geraldo Farias que cuidavam da traia carreira transportando lenhas para a cidade com os bois. Mathias era nosso empregado de confiança que zelava pelos nossos bens e impunha respeito na vizinhança. Era famoso pelas mortes que cometera e sempre dizia que estava às ordens de meu pai para qualquer coisa, contudo, nunca foi acionado por nós. Meu pai era pacífico por natureza e nunca cometeu qualquer ato de violência.  
           
Nossa família era convivente e estimada na região. Dos nove filhos, eu era o quinto: Antônia (Sinhá), Waldomiro, Aristeu e Alíria mais velhos. Adélia, Maurício, Violeta e Marina, mais novos. Hoje, Eu, Adélia, Maurício e Marina são os que ainda restam daquele mundo glorioso de outrora que o vento levou. Nada permanece para sempre, tudo é passageiro, a vida imprevisível e efêmera.    

           
Foto, com palavras saudosas de minha mãe.  Igreja na Fazenda Cantinho, em homenagem a Santo Antônio, feita pelo meu pai Arthur Caldeira de Souza, na década de 30. Nela podemos ver, numa reunião de um terço de último domingo do mês: Meu pai ao lado do oratório do padroeiro, eu aos 7 anos de idade de boné na mão e ao lado de minha irmã  Adélia e de meus irmãos Maurício e Aristeu. Do Lado esquerdo, podemos ver: minha mãe Maria Durães com minhas irmãs Violeta, no colo; Alíria, de branco; Sinhá, ao lado de tia Judith e suas enteadas; agregados e vizinhos presentes e também, o nosso cachorrinho Zip.
           
Os meus padrinhos D. Maricota Durães e seu filho Geraldo Caldeira Brant, nossos parentes, eram reservados e afastados.  A negra Felícia, nossa serviçal e minha “madrinha de carrego”, que me manteve nos seus braços durante a cerimônia do batizado, dava-me todo carinho e proteção. Eu a chama de madrinha e ela me chamava de meu filho. Como as pessoas simples são bondosas! O ar de riquezas separa as pessoas, geralmente, por ilusões e ignorância. Estamos no mesmo barco e a vida não merece tanta atenção.
                  
No meio do ano, festejávamos o nosso padroeiro, com fogueira, rezas na igreja, farta mesadas de café com biscoitos, bolos e o famoso jantar da meia noite, do dia doze de junho de cada ano. Ali reuniam a vizinhança, nossos parentes de Montes Claros e de Juramento, que vinham passar todos os anos, aquelas noites alegres, saudosas e inesquecíveis, juntamente conosco. A sanfona de cento e vinte baixos, do sanfoneiro Exupério, zoava a noite inteira para a satisfação dos incansáveis dançantes. Até eu, “puxava” uma acanhada garotinha encostada na parede, e saia dançando no meio da rapaziada que rodopiava no salão com suas belas garotas.
                 
Dias depois, íamos para nossa casa da cidade situada no bairro Roxo-verde para participarmos dos festejos folclóricos de agosto com seus dançantes vestidos de branco, com capacetes enfeitados de fitas coloridas e espelhinhos redondos, cantos tristes em louvor ao Santo Benedito, acompanhados de violas, caixas e pandeiros, representando os escravos africanos no Brasil Colonial. Os marujos trajando roupas e chapéus sofisticados, tocando músicas bonitas e representando os marujos portugueses descobridores do Brasil. Os caboclinhos com suas vestes cobertas de penas de aves e com seus arcos de flechas representando os indígenas brasileiros. Finalmente, a cavalhada, com seus cavaleiros montando belos cavalos representando a Guerra Santa da Era Medieval. A contenda dos Mouros vestidos de vermelho e dos Cristãos vestidos de azul era uma grande atração. Eu, que não perdia nenhuma dessas atividades de agosto, torcia, mesmo sem saber o verdadeiro significado, para o azul.  Hoje os cavaleiros foram abolidos dessas festividades, talvez, para não se lembrar das atrocidades da Guerra Santa.    
                 
No fim do ano, recebíamos nas altas horas da noite, as visitas das folias com suas violas afinadas, caixas batendo, rebecas e pandeiros soando, acompanhando os foliões com suas músicas melódicas em louvor aos Santos Reis.  
                 
No começo do ano seguinte, retornávamos à nossa casa, no bairro Roxo-verde para as cerimônias da Semana Santa. Assistíamos as severas pregações dos padres europeus, confessávamos os nossos pecados, comungávamos e dias depois, esquecíamos as penas do inferno e de seus capetas e caíamos nos festejos carnavalescos tão condenados pelas pregações severas dos nossos sacerdotes.
                  
Assim, era a nossa vida. Vivíamos com farta alimentação natural, com tranquilidade, sem ambição e preocupações com riquezas, com luxos e outras futilidades O dinheiro era de pouca circulação. Meu pai tinha sua reserva com vendas de gado e outros animais, de vez em quando. Além disso, tínhamos, diariamente, o dinheiro com a venda de lenha para movimentar os fogões de Montes Claros. Um carro de lenha variava de dez a treze mil reis, que nos serviam para as pequenas compras de alguns produtos que a fazenda não produzia, tais como: café, querosene, fósforo, remédios e outras bugigangas. Naquela época não era usado o gás e as famílias valiam–se dos fogões à lenha para cozinhar seus alimentos.
                  
Os agregados viviam sem segurança previdenciária e eram diaristas, quando necessário, servindo de nossas terras para seus plantios, para alimentarem suas famílias. Eram responsáveis, trabalhadores e honestos e viviam em paz e satisfeitos com nossa família e com os vizinhos.
                   
Os problemas que surgiam eram intermediados pelas famílias, amigos e compadres. A Justiça nunca era recorrida nos problemas da região rural e a Polícia era evitada pela sua famosa violência e arbitrariedade.
                     
Assim foi a minha infância, alegre no meio de minha família, dos agregados e dos vizinhos, correndo pelas vastas terras da fazenda, nadando nos rios de águas correntes entre os peixes e nas lagoas povoadas de pássaros aquáticos, o que me deixa saudades indeléveis das coisas passadas, que parecem mais sonhos que realidade. A vida é dura, o que hoje nos parece prazer e alegria, poderá ser motivo de tristezas e saudades no futuro. Hoje, o Cantinho tornou-se campo de treinamentos do 55º Batalhão do Exército e, aquela movimentação do passado, só resta na nossa memória. 

Juvenal, Maurício, Adélia, Marina e Violeta

Como tudo passa!        
            

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