quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

- Crônica -

O LAVRADOR
* Aristônio Canela

A impossibilidade de se definir Arte atrela-se às culturas de tantos matizes e, portanto, histórias vividas e contadas de jeitos diferentes, vendo as manifestações artísticas, desta forma, virarem figuras surgidas de uma amplidão inexplorada por nós, para se tornarem elos de uma suposta corrente, soltos no universo, à espera de uma mão para uni-los.

Com o mais puro propósito de não haver marcados previsíveis compromissos com a vida, a Arte deixa-se surgir de si mesma, eximindo-se de genealogia e só estará apta às decodificações instantâneas quando alguns apenas viram natureza.

Entretanto, se todos virassem, com certeza não existiria sociedade, posto que artistas têm o dom de encherem nunca barrigas.

Esse aspecto, apesar de ser um corte doloroso em nosso cotidiano, é certamente revestido de pura realidade e precisa ser considerado, ficando, portanto, entregue a nós, figuras endoidecidas por circunstâncias, mais uma enorme responsabilidade: dar de comer a almas e corpos.

Alguns leitores têm me perguntado por que tanto uso a Fazenda como fundo de pano de minhas histórias e não tenho outra resposta senão a mais simples: é onde acontecem.
          
Vinha naquele entardecer, depois de quase todo o dia procurando Radiola, uma girolanda bonita e ótima de leite, mas absolutamente avessa às cercas e que, dessa vez, tinha rompido seu próprio recorde, ao sair dos limites da fazenda e cair na estrada, possivelmente à procura de um grande amor.
          
Peguei sua batida depois da porteira azul, ao lado do embarcadouro, e pus Xamã a passo com os olhos pregados no chão, para constatar um sumiço do rastro nas barrancas do Traíras.
          
À tarde, vinha cantando uma cantiga de adeus e meu estômago já não respeitava as pitombas colhidas, contorcendo-se em roncos e gorgolejos, me fazendo aceitar a desdita de minha missão.
          
De volta, meu cavalo pôs-se num viageiro farto e macio, farejando uma generosa porção de farelo de soja e eu um mexidão da feijoada de sábado.
          
Para cortar caminho, optei por descer o Morro do Vento Cantor e, com isso, dei-me às margens do tanque da larga, abusando de água barrenta escorrendo em seu sangradouro.
          
Alguns metros atrás, tinha botado reparo nas duas orelhas levantadas e tesas de Xamã, notadamente um sinal de alerta.
          
Encostado no velho jatobazeiro do campo, emérito sombreador da cabeceira do açude, ele disparou seu olhar, fulminando o meu, quase me derrubando da sela.
          
Era um preto miúdo e gracioso de carapinha branca, olhar generoso e esperto, vestindo um gibão adoirado de gola redonda e mangas longas, chegando aos nós dos dedos de uma mão, pelo visto rápido, não afeito a cabos de enxada.
          
Apoiava um dos pés descalço sobre uma pedra, fazendo-o dobrar o joelho e mastigava o talo, certamente adocicado, de capim do campo, e, ao me notar assustado, abriu um sorriso lindo de pura paz, deixando à mostra dentes alvinhos, alvinhos, enfileirados igualzinho a uma cerca de jardins bucólicos nos filmes americanos.
          
Uma eternidade se passou assim e minhas supra-renais ainda jorravam adrenalina da mais alta qualidade, quando ele sacudiu o corpo e suas asas azuis despencaram em suas costas e, ritmadamente, ruflando-as, levantou um voo suave.
          
Numa pequena desmesura de espaço, uma das pontas tocou um galho da árvore, fazendo uma pena desgarrada dançar feito bailarina ao sabor das ordens de Zéfiro, filho ameno de Eolo.
          
Estumei minha montaria com os calcanhares e, num pulo só, a colhi feito fruta madura no ar e ouvi sua voz, já nas alturas, me dizer: “SAIBA USAR MINHA SEMENTE”.
          
Toquei viagem e cheguei em casa já de noite de boca aberta e, olvidando o banho, fartei-me gulosamente da comida cheirosa. Depois, tirei as botinas, as meias... ao me deitar na rede, o céu desabou num aguaceiro divino e, encolhido, senti o sertão renascer em cada pingo.
          
Lembrei-me de papai dizendo-me: “ESSAS TERRAS SÃO TÃO BOAS QUE SE A GENTE CUSPIR NASCE UM PÉ DE CUSPE”.
          
De madrugadinha, acordei com a pena azul escapulindo da algibeira de minha camisa, fazendo cócegas em meu nariz.

Num ato mecanicamente natural, fui ao pomar e arranjei um lugarzinho bem adubado, onde a plantei, regando-a com o mais puro amor meu. Instantes depois, toda arrepiada, ela se mostrou em múltiplas alegrias e vidas, em pequenos brotos no seu caule. Ajoelhado na terra úmida, eu presenciava o nascimento de um pé de anjo.

Antes de a última estrela despedir-se de mim, tive absoluta certeza de ter sido parido um artista.

*Membro da Academia Montes-clarense de Letras

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

- SERRA DO MEL -

PARECER TÉCNICO SOBRE O TOMBAMENTO DA SERRA DO MEL -

Além da Serra
Fabiano Lopes de Paula*


Serra do Mel - Montes Claros, MG.                                Foto: Fábio Marçal

A Serra do Melo determinou a ocupação do território onde se encontra a cidade de Montes Claros. Traz nisto o traço universal de guia estabelecido pelos seus marcos naturais. Montes Claros, então, nasce e cresce nos domínios do rio Vieira e da Serra que desde sempre emoldura a cidade. Há que se falar também do rio Verde, que faz fronteira, e onde, ao longo do seu curso, deram-se os primeiros povoamentos do Sertão Mineiro. O olhar, o mais aguçado dos cinco sentidos, crê na Serra do Melo como uma paisagem familiar, que nos amparava, dividia o espaço, e, na imanência deste lugar, reafirma um sentimento tão atávico, tão arraigado e inerente à natureza humana, pois fora no ermo da paisagem e dos mistérios da Serra do Melo que aprendemos a nos relacionar com o mundo natural.

O valor paisagístico é o mais evidente e o mais abrangente a ser considerado no processo de preservação a que se propõe este tombamento. Ao se reconhecer, portanto, este valor, reconhece-se a memória dos montes-clarenses e deixa-lhes também uma consciência para as gerações futuras. O sentimento de preservação em nenhum momento poderá ser considerado como algo estranho aos valores de desenvolvimento e crescimento urbano, sendo possível a conciliação destes a partir de uma boa gestão.

A serra nos interessa em sua feição mais próxima do original, em seu bucolismo, sem, contudo, abrir mão de uma tecnologia favorável à sua conservação e do conhecimento do século XXI que a ele pode ser agregado para um melhor uso e conservação do espaço.

A paisagem da Serra do Melo pode se definir como uma configuração dos elementos, apresentados em um meio, onde podem ser percebidos pelos cinco sentidos. A paisagem cultural e natural é associativa, ou seja, seus valores estão nas associações tecidas em torno dela, e em que forma pode ser compreendida por uma sociedade.

 A Carta de Bagé (RS- 17/08/207) assim conceitua a paisagem cultural:

”o meio natural ao qual o ser humano imprimiu as marcas de suas ações e formas de expressão, resultando em uma soma de todos os testemunhos resultantes da interação do homem com a natureza, e reciprocamente da natureza com o homem.(...)”

O tombamento da Serra do Melo reflete os interesses paisagístico/ambiental e o cultural, cada um deles com seus objetivos e métodos específicos que se complementam e convergem para a gestão compartilhada do território.

Sonia Rabelo nos ensina que:

Vale destacar que a preservação, através do tombamento, distingue-se da preservação de ecossistemas previstas na lei federal do meio ambiente. A finalidade e o motivo de uma e de outra são diversos - tombamentos têm como finalidade a conservação paisagística, histórica etc.; a preservação de ecossistemas tem como finalidade a manutenção dos sistemas ecológicos vitais e interdependentes. Por consequência, os efeitos jurídicos de intervenção estatal em um e em outro caso também o serão. [...] Sendo os interesses públicos diversos, a ação do Estado, nesses casos, deverá ser orientada pelo motivo da preservação no sentido de alcançar a finalidade de cada uma das leis específicas. (RABELLO, 2009, p. 86)[1

A preservação da Serra do Melo buscará na harmonização de interesses a melhor conduta para se efetivar o desejo dos montes-clarenses. Trará com o tombamento, além do fator visual, um conforto afetivo e garantirá a história da cidade, não só na face por nós conhecida, mas como uma unidade de conservação. E em torno desta causa todos nós, montes-clarenses, devemos nos unir.

Belo Horizonte, em 20 de dezembro de 2016.
                                                                                                                       
Fabiano Lopes de Paula* - Ph.D - Instituto Histórico Geográfico de Montes Claros.
Analista de proteção e gestão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais.
Ex superintendente do IPHAN-MG.
Doutor em Arqueologia-quartenário/Materiais e Cultura - Universidade Trás-os Montes - Portugal.



[1] RABELLO, Sonia. O Estado na preservação dos bens culturais: o tombamento. Rio de Janeiro: IPHAN, 2009. 156 p.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

- Reflexão -

"Nem tudo precisa ser dito. O que de mais verdadeiro vivemos não merece ser exposto à banalização dos que se adaptaram ao raso da vida".
                  - Pe. Fábio de Melo -

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